O vaso torto
Houve certa vez na cidade de Samarcanda, um mestre ceramista,
reputado como o melhor de seu tempo. Entre todos os seus aprendizes havia um
que se destacava pela qualidade dos vasos que fazia. Ele era talentoso e
cuidadoso. Seu trabalho era irrepreensível, ou quase, porque todos os dias
entre tantos vasos trabalhados à perfeição, um, e apenas um, completamente
torto e disforme se misturava aos outros. O mestre não podia compreender a
razão disso. Haveria uma falha de caráter em seu aprendiz? Por que agia assim?
Só havia uma maneira de descobrir o mistério. Observá-lo o dia
todo. E foi o que o mestre fez. Tudo corria normalmente até que uma linda e
graciosa jovem atravessou a rua bem em frente ao torno do aprendiz.
Todos os dias naquele mesmo horário ela passava ali, levando o
almoço do irmão que trabalhava mais à frente.
O jovem se apaixonara por ela e quando a via tornava-se
perturbado, suas mãos tremiam, seus dedos não podiam dominar os voos do seu
pensamento e a inquietação de seu coração.
O vaso que estivesse no torno nesse momento era a expressão viva
do seu aprendiz pela jovem graciosa.
O mestre sentiu tamanha ternura pelo rapaz, quando compreendeu o
motivo do vaso torto que passou a conduzi-lo ainda com mais carinho e
dedicação. Afinal o vaso torto era consequência do amor e não da
imperícia do aprendiz. Com sua presença a mulher amada fazia surgir uma obra
disforme, mas com sua ausência inspirava tantas obras-primas.
Louvado seja Alá que criou a poesia, beleza e o amor.
Malba
Tahan, A lenda singular do vaso torto. apud.
Recontado em adaptação por Gislayne Matos, In: GOMES, L.; MORAES, F.(org.) A Arte
de Encantar: o contador de histórias contemporâneo e seus olhares. 1ª ed.
São Paulo: Cortez, 2012. P.117.
Como a Beleza venceu o Tédio
Certa
vez, por um desses descuidos do destino, a Vulgaridade tomou o poder no mundo.
Mas para se manter no trono teria que destruir sua maior rival, a Beleza.
Mandou que viesse à sua presença seu súdito de maior confiança, seu braço
direito, seu primeiro-ministro, o Tédio. E ordenou que matasse sua rival, senão
o seu trono estaria sempre sob ameaça.
-
Mas nunca a vi, portanto não poderia reconhecê-la – disse o Tédio. - Como irei
matá-la?
- Pergunte a qualquer poeta e ele lhe dirá como
ela é.
O
Tédio saiu à procura de um poeta e, quando o encontrou, perguntou como faria
para reconhecer a Beleza. O poeta lhe disse.
-
Ela é loira, tem olhos azuis, pele alva e uma boca delicada e vermelha como a
papoula que nasce entre o trigo dourado.
O
Tédio saiu imediatamente à procura de tão ameaçadora rival e de tanto caminhar
foi além do deserto.
Ali
encontrou um pastor de cabras e perguntou-lhe se porventura teria visto a
Beleza por ali.
-
Claro que a vi – respondeu o pastor – Ela está logo à frente, com seu cântaro, buscando água na
fonte.
O
Tédio correu até a fonte, mas ao se aproximar só pode ver uma mulher morena que
tinha os olhos verdes e os cabelos castanhos.
-
Oh não! Não é a Beleza – penso ele em voz alta.
Nisso
passava alguém que, ouvindo o comentário do Tédio, disse-lhe:
-
Ah! Você procura pela Beleza? Ela vive na China.
O
Tédio dirigiu-se para a terra dos mandarins e lá chegando procurou pelo mais
honrado entre todos e perguntou-lhes:
-
Senhor, acaso podes informar-me onde posso encontrar a Beleza?
-
Mas é claro. Não podes vê-la bem à tua frente? É aquela jovem que fabrica
lanternas.
O
Tédio dirigiu-se até lá, mas ao se aproximar deparou com uma jovem delgada,
pálida, de olhos muito negros. Não, não era a Beleza.
Mas
o Tédio não queria desistir de sua missao, afinal interessava-lhe que sua
Vulgar soberana se mantivesse no trono. Ele então apressou o passo e acabou
chegando à África. Lá encontrou um grupo de homens que conversavam animadamente
em uma praça. Correu ate eles e fez sua pergunta de sempre.
-
Mas Beleza mora aqui, veja como ela
caminha faceira em nossa direção. Aquela mulher negra como o ébano, e seios e
quadris fartos e dentes brancos como o leite. Não pode haver beleza maior.
O
Tédio concluiu que de nada adiantaria continuar sua busca, pois a Beleza sempre
fugia dele e se escondia, mas não sabia onde. Todo esforço para destrui-la
seria vão.
É
por isso que a Beleza continua florescendo no mundo sob aspectos tão
diferentes. E, mesmo nas épocas em que por alguma fatalidade reina a
Vulgaridade, ela poderá ser encontrada – pelos poetas, claro!
Conto
Recontado por Gislayne Matos. In: GOMES, L.; MORAES, F.(org.) A Arte de Encantar: o contador de histórias contemporâneo
e seus olhares. 1ª ed. São Paulo: Cortez, 2012. P. 127-128.
O
coração baobá
Os
baobás povoam a África há muito tempo, e são como muitos corações abraçados
fortes e inabaláveis. Mas também são retorcidos como as voltas de uma história.
E com raízes profundas e algumas cicatrizes.
A
lebre depois de um dia cheio de aventuras para obter comida, vinha voltando
para casa de mão abanando e estômago vazio. Certamente sua esposa reclamaria e
falaria durante horas e suas já compridas orelhas. Alias, vai ver que era bem
por isso que suas orelhas eram tão grandes, para suportar melhor as reclamações
dos outros! Vinha a lebre, inclusive de cabeça baixa, pois já era tarde e o
peso de tudo a incomodava.
Quando
passou por baixo do baobá, de uma que sempre tinha que cruzar para poder entrar
em sua toca, ouviu as folhas da grande árvore cantando.
Caluê, caluê dendê
Sem boca, cantamos para você
Caluê, caluê dendê
Sem voz, falamos com você
Caluê, caluê dendê
Coração sem porta
Abre e ninguém vê
[…]
A
lebre jamais tinha reparado na voz daquele baobá. Ficou com uma vontade enorme
de parar e escutar, mas, assim que se encontrou ao tronco a árvore, caiu num
sono profundo.
Acordou
assustada, sobressaltada, ainda mais atrasada do que nunca... Mas parecia que o
tempo parado, pois as folhas da majestosa árvore ainda repetiam a mesma
cantoria:
Caluê, caluê dendê
Sem boca, cantamos para você
Caluê, caluê dendê
Sem voz, falamos com você
Caluê, caluê dendê
Coração sem porta
Abre e ninguém vê
[…]
Então
a lebre teve uma ideia. E era sua ultima chance para não chegar de mãos vazias
em casa.
-
Sabe, seu baobá? Sua sombra se espalha por um longo terreno, mas bem que seus
frutos poderiam fazer o mesmo, não é?
Parece
que o baobá aceitou a provocação da lebre, porque na mesma hora bateu uma
rajada de vento e os frutos tombaram aos milhares. A lebre ria de orelha a
orelha, enquanto catava o que era possível...
Caluê, caluê dendê
Sem boca, cantamos para você
Caluê, caluê dendê
Sem voz, falamos com você
Caluê, caluê dendê
Coração aberto
Abre hoje só pra você
[…]
E
como num passe de mágica, o baobá: “Shiiiiiiiiiiiiiii-shiiiiiiiiiiiiishiiiiiii”...
foi abrindo devagarzinho o seu enorme tronco, deixando a lebre ver tudo o que
havia por dentro. Um imenso tesouro de que ninguém suspeitava: pedras
preciosas, como o brilho da amizade; tecidos bordados em fios de outro, como a
linha que leva um coração a outro, colares das mais reluzentes perolas, polidas
como o amor...
Os
olhos da lebre se incendiaram diante de tamanha riqueza. Até faltava-lhe olhos
para admirar toda aquela preciosidade. Parecia que o baobá dizia em seu ouvido:
-
Leve … lebre …. leve o que for possível carregar contigo … é presente do meu
coração!
Em
meio ao maravilhamento, a lebre se foi, carregando muitos presentes para a sua
esposa, o que certamente a deixaria menos raivosa, pelo atraso e pela ausencia
de caça, e … provavelmente, mais vaidosa, pelo brilho que os enfeites iriam
irradiar, de agora em diante.
Na
mesma hora a esposa da lebre saiu enfeitada da cabeça aos pés, para exibir-se
para a vizinhança. Em seu passeio, encontrou logo a hiena, que encheu os olhos
de cobiça... A notícia já tinha se espalhado.
-
E então, comadre lebre, onde foi mesmo que seu marido arranjou todo esse
tesouro?
-
No velho baobá, querida... - foi logo a esposa da lebre. E aumentou a história,
para parecer também mais importante aos olhos da vizinha. E quanto mais a lebre
descrevia a aventura de seu marido, mais a hiena faiscava de inveja!
-
Eu também irei até este baobá... Pode esperar! Quero só ver o que ele tem pra
me dar!
Dito e feito. Entre um por do sol e um amanhecer,
lá estava a hiena para tentar a sorte com o baobá. E tudo se passou exatamente
igual ao que a lebre havia contando. O baobá cantou, alargou sua sombra,
espalhou seus frutos, abriu seu coração e ofereceu seus tesouros à hiena.
Mas
a hiena era mais gananciosa do que o baobá pensava. Foi pegando tudo, e caiu na
besteira de levar consigo um enorme embornal, para enchê-lo também de joias. E
ainda fez pouco-caso quando pensou ter ouvido o baobá dizer:
-
Leve... hiena … leve o que foi possível carregar contigo... é presente do meu
coração!
Com
seu riso costumeiro, a hiena dizia para si mesma.
-
Eu quero isso... e mais isso... eu quero tudo, tudo só pra mim... e se eu não
puder levar tudo hoje, pode estar certo de que voltarei em breve para dizimar
este baobá.
De
repente, parece que o baobá pressentiu o perigo! Rapidamente fechou seu tronco
e seu coração, e a hiena ficou lá, presa para sempre. E mortal!
É
por isso que o baobá não abre mais seu
imenso tronco, nem para os homens, nem para os animais. Ninguém sabe dos
intermináveis tesouros que há em cada uma dessas enormes árvores.
Mas
de uma coisa todo mundo ficou sabendo; desde esse dia, tudo ficou muito mais difícil
para as hienas. Elas se viram, de repente , obrigadas a vagar pelo mundo à
procura de carne. Nada do que é vivo serve, pois só comem carne morta.
E
aos baobás continuam desafiando o tempo e os homens. E os homens... podem ainda
escolher se querem ser como os baobás ou como as hienas...
Caluê, caluê dendê
Sem boca, cantamos para você
Caluê, caluê dendê
Sem voz, falamos com você
Caluê, caluê dendê
Coração sem porta
Abre
e ninguém vê
[…]
Recontado
por Celso Cisto. In: GOMES,
L.; MORAES, F.(org.) A Arte de Encantar: o contador de
histórias contemporâneo e seus olhares. 1ª ed. São Paulo: Cortez,2012. P.
O
fazendeiro, o padre e o matuto.
Um
fazendeiro vinha andando por uma estrada seca de arder, no meio do sertão. O
calor era de rachar. Depois de muito andar, com sede, com fome e sem encontrar
nem ao menos uma lama viva, ele viu adiante, em uma encruzilhada, uma pessoa
vinda de outra estrada em direção ao entroncamento. Era um padre. O fazendeiro,
ao se encontrar com o padre, pediu a sua bênção.
-
A bênção, seu padre, se o senhor me permite continuar seguindo viagem ao seu
lado, isso será para mim uma grande honra, pensando bem, seu padre, isso será
para mim muito mais do que uma honra, será uma enorme bênção dos céus.
O
padre, na mesma hora, olhou par ao fazendeiro e disse:
-
Meu filho, como negar a companhia deste humilde servo do Senhor a um filho de
Deus nesta peregrinação por uma estrada tão deserta e seca?
Assim
feito, os dois seguiram juntos, o fazendeiro e o padre.
Mas,
à medida que eles caminhavam, o calor aumentava e a sede também. E depois de
muito e muito andar, eles viram que, vindo de outra estrada, aproximava-se um
andarilho que em pouco tempo se ajuntaria ao cortejo, um matuto que usava um
chapéu de palha todo velho e esfarrapado, mas que portava um bem mito precioso
para aquela ocasião; uma moringa de barro com água, pois a cada passo que o
matuto dava, ouvi-se o gostoso barulho; “chublec, chublec, chublec”, e sentiram
uma sede ainda maior. Na mesma hora, percebendo que eles olhavam para a sua
moringa, o matuto disse:
-
Boas tardes, seu doutor! Boas tardes e sua bênção, seu padre! Se eu puder
seguir humildemente na companhia de ocês por essa estrada afora, eu vou ficar
muito satisfeito. Eu tenho até um pouco d'água pra oferecer se ocês quiserem um
golinho - e deu um sorriso farto.
Quando
ele sorriu, imagine que de todos os dentes que se costuma ter na boca, ele
tinha apenas dois, um em cima e outro embaixo.
O
padre, sem se importar com este fato, aceitou a água, dizendo:
-
Muito obrigado, meu filho, toda água é sagrada e benta – e bebeu.
-
Mas o fazendeiro pensou: “Eu é que não vou beber água no mesmo lugar que esse
homem bota a boca.” E disse:
-
Eu ainda não tô com muita sede não. Viu? Fico agradecido.
E
continuaram seguindo estrada, os três: o fazendeiro, o padre e o matuto.
Depois
de muito seguir e caminhar sem que encontrassem um rancho, uma casa habitada,
uma cacimba ou poço com água, o fazendeiro, sentindo uma sede cada vez maior,
percebeu que não iria aguentar por muito tempo. Então, muito contrariado,
pediu:
-
Ô matuto, me dê cá um bocado dessa água que é pra mode eu molhar as beirada dos
beiço.
-
Pois não, seu doutor, tome a moringa e beba.
O
fazendeiro, que não se achava bobo, já tinha observado, nas ocasiões em que o
matuto tirava a tampa da moringa para oferecer sua água, que na beirada do
gargalo havia um quebradinho. Ele pensou “Se tem um lado quebrado na moringa,
eu vou beber bem no lugar onde falta essa lasca, já que ninguém bebe em canto
quebrado mesmo, não é?”
O
fazendeiro pegou, girou, mirou e colocou a boca exatamente no canto quebrado do
gargalo, bebendo com vontade.
Quando
acabou de beber; o matuto olhou para ele falou:
-
Mas eu doutor; o sinhô tem um gosto igual quinenzim que o meu. Eu também só
gosto de beber água nesse lugar onde tem o quebradinho.
O
fazendeiro, contrariado, deu uma cuspida, entregou a moringa e disse:
-
Pois pegue essa moringa que eu já tô satisfeito.
E
seguiram viagem.
A
sede do fazendeiro tinha sido saciada e, depois de andarem mais e mais, eles
tiveram a sorte de encontrar, antes que a noite caísse, uma casa habitada.
Puderam descansar um pouco, encheram as moringas e até receberam de presente um
pedacinho para os três. Eles agradeceram e seguiram viagem.
Então,
o padre, que era o mais estudado entre os três, propôs:
-
Meus filhos, vamos deixar passar esta noite e, amanhã pela manhã, aquele que
tiver sonhado o sonho mais belo comerá o queijo inteiro sozinho.
Ele
tinha a certeza de que ganharia a peleja, afinal de contas era quem tinha o
saber da oratória, conhecia a palavra divina, a beleza dos céus e das sagradas
escrituras. O fazendeiro, por sua vez,
que não era bobo, falou:
-
Pois seu padre, o senhor fique sabendo que eu também sou danado pra ter sonho
bonito, viu?
Nem
deram conversa par ao matuto achando que, por ser homem sem instrução, ele não
teria a mínima chance naquele embate.
Depois
de chegarem a um lugar onde poderiam dormir debaixo de alguns arvoredos eles
ajeitaram as suas coisas, colocaram uma loninha no chão e amarraram o queijo em
um galho para que ficasse protegido e guardado. Dormiram cada um no seu canto
até que os pássaros cantaram, a manhã surgiu, os três acordaram e a peleja
começou.
O
padre foi o primeiro.
-
Meus filhos, nessa noite, eu sonhei que estava andando por um campo verdejante,
quando me deparei com a escada de Jacó
com mais de cem degraus levando até o céu. Então, eu comecei a subir por essa
escada enquanto os anjos e querubins tocavam suas trombetas anunciando minha
chegada.
Um
sonho bonito. Mais do que bonito, divino. Sonho mais belo que esse não era
coisa fácil, mas o fazendeiro pensou, pensou e disse:
-
Seu padre, o senhor me dê licença, mas apesar de o sonho do senhor ter sido
bonito demais da conta, o meu foi de uma belezura ainda maior. Eu sonhei, seu
padre, que o senhor tava andando por esse campo até encontrar a tal escada de
Jacó. E quando o senhor começou a subir, o senhor não viu, mas quem já tava lá
em cima era eu, lá no céu, cercado daquele monte de anjo e querubim bonitim
tocando trombeta.
Um
duelo difícil, bem disputado. Os dois, é claro, tinham a certeza de que o
matuto não teria a mínima chance, e como seria difícil decidir qual dos dois sonhos
era o mais belo, o padre e o fazendeiro já pensavam em dividir entre eles o
queijo, deixando o matuto de lado. Mas, para que pudessem zombar do sonho do
matuto e efetivar o plano, resolveram dar-lhe a palavra:
-
Agora, matuto, conte o seu sonho, se é que teve algum.
E
o matuto começou:
-
Ai, gente, ocês me adesculpem, mas meu sonho não chega nem perto da fromosura
do sonho de ocês. Eu não sonhe sonho bonito não, que eu não sou de sonhar essas
coisas, mas sonhei sonho real, mas real mesmo, viu? Quer ver? Escuta: eu também
sonhei que tava andando, mas não era nesse campo esverdejante do seu padre,
não, que faz tempo que eu não vejo planta verde nesse sertao que é secura pra
todo lado. Eu tava andando era nessa estrada seca mesmo, essa que nós andemo ontem
até cansar. Aí, depois de muito andar, com fome e com sede, eu vi o seu padre.
Vi mesmo. E ele foi subindo pela tal escada de Jacó que sumia lá no céu de tão
comprida. O seu padre já tava pela metade da escada, eu pensei: “Que bonito, o
santo padre tá indo pro céu.” Quando olhei mais pra cima, vi que lá no céu já
tava o seu doutor; homem bom que só ele, cercado de anjo e querubim, tudo
peladim tocando corneta, e eu gritei: “Seu doutor; seu padre, vosmecês
esqueceram o queijo.” E vocês dois, lá de cima gritaram: “Nós não precisamos de
queijo nada, matuto, que nós já tamo aqui no céu.” Olhe, gente, o sonho foi tão
real, que eu levantei e comi o queijo todinho sozinho.
Recontado
por Fabiano Moraes In: GOMES,
L.; MORAES, F.(org.) A Arte de Encantar: o contador de
histórias contemporâneo e seus olhares. 1ª ed. São Paulo: Cortez,2012. P.337-341.
O Caso do Bolinho - Tatiana Belinky
AS TRÊS DOCEIRAS
Era uma vez uma moça, um pouco
preguiçosa, que detestava cozinhar. Só que sua mãe era uma exímia cozinheira e
vivai insistindo para que a menina fosse para a cozinha.
Certo dia, a mãe perdeu a paciência
e trouxe para casa um caixote cheio de goiabas a fim de que a filha fizesse
doce com elas – e mais, a menina só poderia sair de casa novamente quando todas
as frutas tivessem virado doce!
Sem sequer saber como se faz doce de
goiaba, a menina foi para a janela e começou a chorar bem alto.
Justamente naquele momento, a Rainha
estava passando por ali e viu a moça chorando à janela. Mandou, então, parar a carruagem;
foi até a casa perguntar para à mãe porque aquela menina chorava tanto que seus
gritos eram ouvidos até da estrada.
Com vergonha de dizer que a filha
era preguiçosa e detestava trabalhar, a velha mentiu dizendo:
- Majestade, é que minha filha adora fazer
doce de goiaba e não há jeito de eu
impedir que ela fique cozinhando, cozinhando o dia inteiro, sem parar. E como
eu sou muito pobre e não posso comprar todas as goiabas de que ela precisa; ela
chora desse jeito.
A Rainha, muito animada, falou:
- Pois saiba que doce de goiaba é o
predileto do Príncipe, meu filho. Deixe-me levar sua filha para o palácio. Lá,
tenho um pomar cheio de goiabeiras que dão frutas o ano todo.
A mãe ficou satisfeitíssima com
convite, permitindo que a Rainha levasse a jovem para o palácio. Lá chegando,
mostrou a menina o quintal cheio de goiabeiras carregadinhas e mandou ela
colher as frutas para que fizesse doce com todas elas. Inclusive, se o Príncipe
gostasse dos doces, ela poderia até vir a se casar com ele, pois, apesar de ser
pobre, uma mulher que gostava tanto de trabalhar seria, sem dúvida, uma ótima
companheira.
A jovem ficou horrorizada, pois além
de não saber fazer doces de goiaba, não conseguia colher aquelas frutas todas,
nem que vivesse trezentos anos e trabalhasse todos os dias de manhã até a
noite. Quando ficou sozinha, nervosa e sem saber o que fazer, a menina foi até
a janela e começou a chorar bem alto.
Viu, então, três mulheres que
caminhavam em sua direção. A primeira tinha os braços tão compridos que
arrastavam pelo chão; a segunda tinha as mãos vermelhas como o fogo; e a
terceira tinha um beiço enorme e tão saltado para frente que chegava a fazer
sombra na ponta do pé. As três pararam na frente da moça e perguntaram por que
ela estava chorando daquele jeito. Ela lhes contou o que acontecera e as
mulheres disseram:
- Nós podemos mudar sua sorte.
Faremos os doces de goiaba em seu lugar, mas você tem que prometer que vai nos
convidar para o seu casamento e nos chamar de “tia” três vezes.
Na mesma hora, a menina prometeu e
as mulheres começaram a trabalhar. A primeira colhia as goiabas, esticando os
braços para pegar até as mais distantes; a segunda partia as frutas,
apoiando-as nas próprias mãos; e a terceira experimentava o doce para saber se
já estava no ponto, sempre pingando um pouco no seu lábio inferior. No fim, os
doces estavam apetitosos, uma delícia de dar água na boca.
Quando a Rainha chegou, viu o pomar
quase todo vazio. Experimentou o doce... e foi imediatamente levar um pouco
para seu filho, que na mesma hora quis conhecer a pessoa que tinha feito doce
tão maravilhoso. Quando o Príncipe foi aos aposentos da moça, vendo o pomar
todo vazio e o quarto dela lotado de doce de goiaba, marcou na mesma hora a
data do casamento.
A moça então pediu:
- Tenho três tias que são muito boas
para mim. Gostaria de convidá-las para o casamento.
O Príncipe e a Rainha concordaram.
Assim, no meio da festa de
casamento, chegou a primeira doceira. A noiva a recebeu amavelmente:
- Entre, minha tia; sente-se, minha
tia; jante conosco, minha tia!
Logo depois chegou a segunda mulher:
- Olá, minha tia; que bom que a
senhora veio, minha tia; divirta-se, minha tia.
Por fim, chegou a terceira mulher:
- Boa noite, minha tia; entre, minha
tia; fique à vontade, minha tia.
O Príncipe e todos os convidados
acharam aquelas senhoras muito esquisitas, e, mais tarde, o noivo, um pouco
constrangido, acabou perguntando à primeira das doceiras:
- Como ficastes com os braços tão
compridos?
- Colhendo goiabas nas árvores, meu
sobrinho.
- E a senhora, por que suas mãos são
tão vermelhas?
- Ah, é de tanto cortar goiabas, meu
sobrinho – respondeu a segunda mulher.
O noivo se virou para a terceira e
perguntou:
- Como a senhora ficou com o beiço
tão para frente?
- Experimentando doce de goiaba, meu sobrinho.
Ouvindo aquilo, o Príncipe se
assustou e foi logo ordenando:
- De hoje em diante, a minha linda
esposa nunca mais se aproximará de nenhuma goiabeira, nem jamais voltará a
fazer doce de goiaba! Eu não quero que ela fique toda deformada... – Só que
essa última frase ele pensou, mas não disse, claro.
Assim, a moça, que era um pouco
preguiçosa, teve sua sorte mudada para sempre: se viu totalmente livre do
trabalho que tanto detestava e viveu feliz, tranqüila e descansada até o fim de
seus dias.
(Fonte:
Pode Entrar, Dona sorte – Grupo Confabulando, Rio de Janeiro: Rocco – 2003)
Já em criança a vaca Glória era mais gorda do que as outras vacas. E isto foi-se
acentuando à medida que crescia. Os lábios eram carnudos, o nariz largo, a cabeça
tão grande como uma abóbora (por acaso era até maior) e, ainda por cima, tinha
umas pernas fortes, uma barriga gorda, pêlos grossos e duros e os pés pesados.
Como não havia roupas à venda para o seu tamanho, tinha de ser ela mesma a fazêlas
à mão. Fazia-as sem gosto nem grande jeito, e por isso, dentro daqueles estidos,parecia ainda mais possante do que realmente era.
Tinha um andar atabalhoado e, quando falava, a voz era semelhante à de alguém a gritar para dentro de uma cisterna.
Glória não era modesta nem pensava tornar-se uma boa vaca leiteira como todas as vacas da sua idade. Não! Era ambiciosa e ansiava por qualquer coisa de grandioso!
Um engraçadinho qualquer, creio que a raposa, dissera-lhe que com uma voz tão bonita, devia estudar canto. Como tinha um pai rico que pagava tudo, teve aulas de música e, em seguida, deu ainda um concerto.
Todas as vacas vieram ouvir Glória cantar. Começou com A violeta na orla do caminho e esta foi também a última canção que cantou. É que, se quando falava a voz parecia que saía de uma cisterna, ao cantar, soava como dois elefantes a trombetear num regador em simultâneo com uma serra a cortar metal. A assistência tapava os ouvidos, assobiava, gritava e batia com os pés para não ter de ouvir aquela voz horrível, ou então corria em debandada pelo prado onde o concerto estava a decorrer.
Glória parou e começou a chorar.
As vacas pensaram: “É agora que ela se vai tornar uma boa vaca-leiteira!”
Mas não! Teve aulas de dança e ainda quis tentar a sorte como bailarina!
Quando se apresentou pela primeira vez, vieram ainda mais vacas vê-la dançar do que quando cantou.
Glória apareceu no palco com uma saia tão grande que dava à vontade para fazer sete toalhas de mesa. Logo ao primeiro passo, tropeçou e caiu. As vacas na assistência riram-se, mas Glória não se deixou intimidar e deu um salto. Com o peso, as tábuas do palco partiram e ela caiu, ficando presa até à altura dos braços. Os espectadores riram-se, mas cinco fortes bois subiram ao palco e ajudaram-na a sair do buraco, onde ainda continuava a dançar. Novamente em cima do palco, Glória começou a dançar perigosamente perto da boca de cena. Desequilibrou-se e caiu, aterrando exatamente em cima dos músicos que estavam a tocar no fosso da orquestra.
Quando voltou a erguer-se, com dificuldade, o contrabaixo estava partido, a trompete completamente espalmada, o tambor rebentado, o acordeão rasgado em dois e o maestro, com o susto, tinha engolido a batuta. Bem se pode imaginar as gargalhadas da assistência quando a bailarina desapareceu por detrás das cortinas.
Em consequência disto, Glória, muito envergonhada, emigrou para o país dos hipopótamos. Aí dançou para os pesados e grosseiros animais, e cantou ainda algumas das suas canções.
No dia seguinte lia-se no jornal:
A artista Glória, uma figurinha delicada e frágil, deu ontem um concerto onde também dançou. Nunca tinha sido possível no nosso país admirar uma voz tão clara e cristalina; nunca se tinha ouvido um canto tão belo. Dançou, melhor dizendo, flutuou com tal graciosidade que todas as nossas meninas-hipopótamos ficaram encantadas pela sua leveza. Esperemos que a artista Glória dance e cante mais vezes aqui entre nós, no país dos hipopótamos.
Paul Maar
Reinhard Michael (org)
Wo Fuchs und Hase sich Gute Nacht sagen
Hochstadt, Gerstenberg Verlag, 2002
MÁRIO O MARINHEIRO
Mário Marinheiro viajava muito e em suas viagens levava livros e papéis de carta, pois gostava muito de ler e de escrever. As cartas que escrevia eram depois dobradas e colocadas em envelopes. Quando chegavam as respostas, ele as desdobrava para ler, dentro da barraca onde ficava acampado, isso quando não estava em alto-mar.
Na barraca, em contato com a vida ao ar livre, Mário marinheiro podia observar o vôo das aves e os ninhos de passarinhos dos mais variados formatos. Certo dia, Mário Marinheiro percebeu que sua barraca estava precisando de uma pintura na parte da frente e também de uma reforma no telhado, que era reto e passara a ser bicudo.
Á noite, o toldo tinha que ser levantado, primeiro de um lado, transpassando-o para ficar bem preso, e depois do outro.
Mário Marinheiro gostava de construir com papel um chapéu de forma triangular para se proteger do sol. Quando precisava de saquinho para pipoca, copo ou coador, podia obtê-los virando o chapéu para baixo.
Um dia, sentiu que o chapéu que construíra era muito grande e resolveu reformá-lo. Uniu então os pontos do chapéu, como se fosse o bico de um passarinho.
Levantando as pontas que apontavam para baixo, uma para cada lado, Mário Marinheiro obteve um chapéu menor.
Como o chapéu continuava grande, tentou diminuí-lo novamente, repetindo as mesmas dobras.
Mas, arrependido, desdobrou as últimas abas, puxando para fora suas duas pontas.
Qual não foi sua surpresa ao ver o chapéu transformar-se num barco.
Certo dia, navegando em alto-mar, o barco de Mário Marinheiro começou a balançar de um lado para o outro, pois as ondas estavam revoltas por causa da chuva que começara a cair. no céu haviam muitas nuvens, que provocavam trovões barulhentos.
De repente, o barco bateu num rochedo, o que lhe arrancou a parte da frente - a proa.
O barco rodopiou e foi arrancada a parte de trás - a popa.
Em seguida o barco emborcou, virando o mastro de ponta cabeça e bateu num recife, perdendo a ponta do mastro. O barco foi então afundando, afundando e se desmanchando. Como Mário Marinheiro sabia nadar e boiar muito bem, pois praticava esportes e tinha muita resistência, foi nadando até a praia e salvou-se... Graças a seu barco, que se transformara adivinhe em que?
Numa camiseta salva-vidas. Mário Marinheiro resolveu decorar o seu colete, que tal você agora produzir o seu?
Fonte: A arte magia das dobraduras - Lena Aschenbach, Ivan Fazenda, Marisa Elias 1997.
CABRA CABREZ
Certa vez um Coelhinho muito branquinho, muito branquinho, acordou, se espreguiçou e disse cheio de alegria:
- Que lindo dia! Que lindo dia! Vou colher umas cenouras para fazer o meu caldinho. E assim dizendo ele saiu correndo. Por onde ele passava a bicharada alegre perguntava:
- Aonde vai com tanta pressa, Coelhinho bonitinho?
- Vou colher umas cenouras pra fazer o meu caldinho!E assim, tempos depois, o Coelho voltou todo feliz carregado de cenouras até a ponta do nariz. Mas quando tentou entrar em sua toquinha... Vejam só o que encontrou:
- Beeé, Beeé. Bem lá no fundo brilhando estavam dois grandes olhos espiando para fora muito espantados. - Beeé, Beeé. Era o Cabra Cabrez, que lá estava de olhos arregalados.
- EU SOU O CABRA CABREZ VAI EMBORA COELHINHO, QUE DE UM EU FAÇO TRÊS.
- Aí, que susto, que perigo e agora? Como é que eu vou entrar na minha toquinha? Ahh, já sei, vou chamar um amigo para me ajudar. O coelhinho muito aflito chamou o Cabrito e o Cabrito foi chegando e foi berrando:
- Meeé, Meeé !Mas, o Cabra Cabrez, nem se assustou e ainda berrou:
- EU SOU O CABRA CABREZ VAI EMBORA CABRITINHO, QUE DE UM EU FAÇO TRÊS. E o Cabritinho saiu correndo, tremendo, tremendo, de medo. Mas, o Coelhinho não desanimou, ele foi bem devagarzinho e chamou o Boi. O Boizinho veio e mugiu, mugiu:
- Muuú, Muuú !Mas, o Cabra Cabrez nem ouviu e ainda berrou:
- EU SOU O CABRA CABREZ VAI EMBORA SEU BOIZINHO, QUE DE UM EU FAÇO TRÊS.E o Boizinho saiu correndo, tremendo, tremendo de medo.Coitado do Coelhinho, muito assustado entrou pelo mato e foi chamar o Gato.E o Gatinho foi chegando e foi miando:
- Miau, Miau!
Mas o Cabra Cabrez nem se assustou e ainda berrou:
- EU SOU O CABRA CABREZ VAI EMBORA SEU GATINHO, QUE DE UM EU FAÇO TRÊS.E o Gatinho saiu correndo, tremendo, tremendo de medo.E o Coelhinho cada vez mais assustado subiu o morro e chamou o cachorro.
E o Cachorrinho chegou latiu e latiu:
- Au, Au !
Mas o Cabra Cabrez nem ouviu e ainda berrou:
- EU SOU O CABRA CABREZ VAI EMBORA CACHORRINHO, QUE DE UM EU FAÇO TRÊS. E o Cachorrinho saiu correndo, tremendo, tremendo de medo.
Coitadinho do Coelhinho desanimado começou a chorar:
- Ai, Ai, Ai, eu não posso mais entrar na minha toquinha, ai como eu sou infeliz, como eu sou.
Porém, nesse momento, um Mosquitinho bem pequenininho pousou na ponta do seu nariz e fez:
- Zum, Zum ! Não chore Coelhinho eu vou tirar o Cabra Cabrez de sua toca.- Você um Mosquitinho, tão pequenininho, não pode ser.
- Pode sim, você vai ver.
E assim dizendo o Mosquitinho foi bem devagarinho e entrou de uma vez lá no fundo do ouvido do Cabra Cabrez e começou a fazer:
- Zum, Zum, Zum!
E o Cabra Cabrez começou a gritar:
- Socorro, Socorro, Socorro! Estou perdido, que ZumZum é esse, que entrou no meu ouvido. Zum, Zum, Zum.E saiu em disparada pelo meio da estrada.
E assim o Coelhinho todo feliz pode voltar para a sua toquinha carregado de cenouras até a ponta do nariz.
E a noite chegou o Cabritinho
- Meeé, Meeé, o Boizinho
- Muuú, Muué, o Gatinho
- Miau, Miau, o Cachorrinho
- Au, Au e o Mosquitinho
- Zum, Zum e fizeram a mais bonita festa, que já se viu no meio da floresta.
Fonte: Coleção Disquinho (1966)
A MENINA DOS FÓSFOROS
Hans Christian Andersen 1805 - 1875
Fazia um frio terrível, nevava e começava a escurecer. Era a última noite do ano, a noite do Ano Bom. No frio e na escuridão, andava, pela rua, uma garotinha pobre, descalça, de cabeça descoberta. Ao sair de casa, tinha chinelos nos pés. Mas os chinelos eram grandes demais, sua mãe os havia usado antes, e, de tão grandes que eram, a menina os perdera ao atravessar a rua correndo, no momento em que dois carros passavam a toda velocidade. Não conseguira encontrar um dos chinelos, e o outro um rapaz levara, dizendo que usaria como berço quando tivesse filhos.
Lá ia, pois, a menina, com os pezinhos nus, arroxeados de frio. Trazia num velho avental certa porção de fósforos e segurava um pacotinho deles na mão. O dia inteirinho ninguém lhe comprara um só palito de fósforo e segurava um pacotinho deles na mão. O dia inteirinho ninguém lhe dera um níquel. Sofrendo frio e fome, a pobrezinha, andando pela rua, parecia apavorada. Os flocos de neve caíam-lhe sobre os longos cabelos louros, que formavam graciosos cachos em torno da nuca – mas a menina estava longe de pensar em cabelos bonitos.
Todas as janelas estavam iluminadas, e chegava até a rua um aroma delicioso de ganso assado, pois era a noite de Ano Novo. Nisso, sim, ela pensava.
Por fim, ela encolheu-se num canto, entre duas casas: uma delas avançava mais sobre a rua que a outra. Sentou-se, encolheu as perninhas, mas continuava a sentir frio. Não tendo vendido um único fósforo, não possuindo um único níquel, não ousava ir para casa, onde o pai bateria nela. Alem disso, também fazia frio na casa onde moravam – uma casa sem forro, com o telhado cheio de fendas, por onde o vento sibilava, apesar de haverem tapado muitas delas com palha e trapos. Suas mãozinhas estavam enregeladas. Um pequenino fósforo lhes faria bem. Pudesse ela, com os dedos duros, puxar um fósforo do pacotinho, riscá-lo contra a parede e aquecer os dedos! Conseguiu-o, afinal; tirou um e riscou-o. Como o fósforo ardeu e crepitou! A chama clara e quente parecia uma velinha, quando a envolveu com a mão. Era uma luz estranha. A garotinha imaginou estar sentada em frete a uma lareira de ferro, com adornos e um tambor de latão polido. O fogo crepitava alegremente, e aquecia tanto... Que beleza! A pequena já ia estendendo os pés, para aquecê-los também ... quando a chama se apagou e a lareira desapareceu. Ela estava sentada na rua, com um pedacinho de fósforo queimado na mão.
Riscou novo fósforo, que ardeu, claro, brilhante. Onde o clarão incidiu, a parede tornou-se transparente como um véu. Ela viu então o interior de uma casa, onde estava posta uma mesa, com toalha muito alva e fina porcelana. O ganso assado fumegava, recheado de ameixas e maçãs, e, o que foi ainda mais extraordinário, de repente o ganso pulou da travessa e saiu cambaleando pela sala, com o garfo e a faca espetados nas costas. Veio vindo assim até ao pé da menina pobre. Aí o fósforo se apagou, e só se via a parede, grossa e fria.
Ela acendeu outro fósforo. Viu-se sentada sob os ramos da mais linda árvore de Natal. Era ainda maior e mais enfeitada que a árvore que ela vira através da porta envidraçada, na sala do rico negociante, no Natal passado. Milhares de velas ardiam nos ramos verdes, e figuras coloridas, como as que adornam as vitrinas das lojas, a fitavam. A pequena estendeu as mãos para o alto – mas nisto o fósforo se apagou. As velas de Natal foram subindo, cada vez mais, e ela viu que eram estrelas cintilantes. Uma delas caiu, traçando um longo risco de fogo no céu.
- Deve ter morrido alguém – disse a pequena.
A velha avó, única pessoa que lhe quisera bem, mas que estava morta, costumava dizer: “Quando uma estrela cai, sobe aos céus uma alma.”
A menina tornou a riscar um fósforo contra a parede. No clarão produzido em volta, ela viu, radiante e iluminada, a velha avó, meiga e bondosa.
- Vovó! – gritou a pequena. – leva-me contigo! Sei que não mais estarás aí quando o fósforo se apagar. Desparecerás, como a boa lareira, o delicioso ganso assado e a grande, linda árvore de Natal!
Riscou às pressas o resto dos fósforos que havia no pacotinho, para ter a avó ali a seu lado e retê-la. O clarão dos fósforos tornou-se mais intenso que a luz do dia. Nunca a avó fora tão grande e bela. Ergueu a menina nos braços e as duas voaram, felizes, para as alturas, onde não havia frio nem fome, nem apreensões, voaram para junto de Deus.
Quando raiou a manhã, muito fria, encontraram, ali no cantinho, entre as duas casas, a menina, com as faces coradas e um sorriso a brincar-lhe nos lábios. Estava morta, gelada. Morrera de frio na ultima noite do ano velho. A aurora do Ano Novo brilhava sobre o pequenino cadáver, que jazia com os fósforos nas mãos. Um maço inteiro estava queimado.
- Ela quis aquecer-se – disseram.
Ninguém sabia que maravilhas ela vira, nem imaginava o esplendor que a cercara, com a velha avó, nas alegrias do Ano Novo.
Fonte: Hans Andersen. Livro: Contos de Andersen – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
O GIGANTE EGOÍSTA
Oscar Wilde
Tradução de Oscar Mendes
Todas as tardes, ao regressar da escola, costumavam as crianças ir brincar no jardim do Gigante.
Era um jardim amplo e belo, com um macio e verde gramado. Aqui e ali, por sobre a relva erguiam-se lindas flores como estrelas e havia doze pessegueiros que na primavera floresciam em delicados botões cor-de-rosa e pérola, e no outono davam saborosos frutos. Os pássaros pousavam nas árvores e cantavam tão suavemente que as crianças costumavam parar seus brinquedos, a fim de ouvi-los. “Como somos felizes aqui!”, gritavam uns para os outros.
Um dia o Gigante voltou. Tinha ido visitar seu amigo o Ogre de Cornualha e ali vivera com ele durante sete anos. Passados os sete anos, dissera tudo quanto tinha a dizer, pois sua conversa era limitada, e decidiu voltar para seu castelo. Ao chegar, viu as crianças brincando no jardim.
— Que estão vocês fazendo aqui? — gritou ele, com voz bastante ríspida e as crianças puseram-se em fuga.
— Meu jardim é meu jardim — disse o Gigante —. Todos devem entender isto e não consentirei que nenhuma outra pessoa, senão eu, brinque nele.
Construiu um alto muro cercando-o e pôs nele um cartaz:
É PROIBIDA A ENTRADA OS TRANSGRESSORES SERÃO PROCESSADOS
Era um Gigante muito egoísta.
As pobres crianças não tinham agora lugar onde brincar. Tentaram brincar na estrada, mas a estrada tinha muita poeira e estava cheia de pedras duras, e isto não lhes agradou. Tomaram o costume de vaguear, terminadas as lições, em redor dos altos muros, conversando a respeito do belo jardim por eles cercados. “Como éramos felizes ali!” diziam uns aos outros.
Depois chegou a primavera e por todo o país havia passarinhos e florinhas. Somente no jardim do Gigante Egoísta reinava ainda o inverno. Os pássaros, uma vez que não havia meninos, não cuidavam de cantar nele e as árvores esqueciam-se de florescer. Somente uma bela flor apontou a cabeça dentre a relva, mas quando viu o cartaz, ficou tão triste por causa das crianças que se deixou cair de novo no chão, voltando a dormir. Os únicos que se alegraram foram a Neve e a Geada.
— A primavera esqueceu-se deste jardim — exclamaram —. de modo que viveremos aqui durante o ano inteiro.
A Neve cobriu a relva com seu grande manto branco e o Gelo pintou todas as árvores de prata. Então convidaram o Vento Norte para ficar com eles e o vento veio. Estava envolto em peles e bramava o dia inteiro no jardim, derrubando chaminés.
— Este lugar é delicioso — dizia ele —. Devemos convidar o Granizo a fazer-nos uma visita.
De modo que o Granizo veio. Todos os dias, durante três horas, rufava no telhado do castelo, até que quebrou a maior parte das ardósias, e depois punha-se a dar voltas loucas no jardim, o mais depressa que podia. Trajava de cinzento e seu hálito era frio como gelo.
— Não posso compreender por que a Primavera está demorando tanto a chegar — disse o Gigante Egoísta, ao sentar-se à janela e olhar para fora, para seu jardim frio e branco —. Espero que haja uma mudança de tempo.
Mas a Primavera nunca chegou, nem tampouco o Verão. O Outono deu frutos áureos a todos os jardins, mas ao jardim do Gigante não deu nenhum.
— É demasiado egoísta — disse ele.
De modo que havia sempre Inverno ali e o Vento Norte, e o Granizo, e a Geada e a Neve dançavam por entre as árvores.
Uma manhã jazia o Gigante acordado em sua casa, quando ouviu uma música deliciosa. Soava tão docemente a seus ouvidos que pensou que deviam ser os músicos do Rei que iam passando. Era na realidade apenas um pequeno pintarroxo que cantava do lado de fora de sua janela, mas já fazia tanto tempo que não ouvia ele um pássaro cantar em seu jardim que lhe pareceu aquela a mais bela música do mundo. Então o Granizo parou de bailar por cima da cabeça dele, o Vento Norte cessou seu rugido e delicioso perfume chegou até ele pela janela aberta.
— Creio que chegou por fim a Primavera — disse o Gigante, saltando da cama e olhando para fora.
Que viu ele?
Viu um espetáculo maravilhoso. Por um buraco feito no muro, as crianças tinham-se introduzido no jardim, encarapitando-se nas árvores. Em todas as árvores que conseguia ver achava-se uma criancinha. E as árvores sentiam-se tão contentes por ver as crianças de volta que se haviam coberto de botões e agitavam seus galhos gentilmente por cima das cabeças das crianças. Os pássaros revoluteavam e chilreavam, com deleite, e as flores riam, apontando as cabeças por entre a relva. Era um belo quadro. Apenas em um canto ainda havia inverno. Era o canto mais afastado do jardim e nele se encontrava um menininho. Era tão pequeno que não podia alcançar os galhos da árvore e vagava em redor, chorando amargamente. A pobre árvore estava ainda coberta de geada e neve e o Vento Norte soprava e rugia por cima dela.
— Sobe, menino! — dizia a Árvore, inclinando seus ramos o mais baixo que podia. Mas o menino era demasiado pequenino.
E ao contemplar o Gigante aquela cena seu coração enterneceu-se.
— Como tenho sido egoísta — disse. Agora estou sabendo por que a Primavera não vinha cá. Vou colocar aquele pobre menininho no alto da árvore e depois derrubarei o muro e meu jardim será para todo o sempre o lugar de brinquedo para os meninos.
Sentia-se deveras muito triste pelo que tinha feito.
De modo que desceu as escadas e abriu a porta de entrada bem devagarinho, saindo para o jardim. Mas quando as crianças o viram, ficaram tão atemorizadas que saíram todas a correr e o jardim voltou a ser como no inverno. Somente o menininho não correu, pois seus olhos estavam tão cheios de lágrimas que não viram o Gigante chegar. E o Gigante deslizou por trás dele, apanhou-o delicadamente com a mão e colocou-o no alto da árvore. E a árvore imediatamente abriu-se em flor e os pássaros chegaram e cantaram nela pousados e o menininho estendeu seus dois braços, cercou com eles o pescoço do Gigante e beijou-o. E as outras crianças, quando viram que o Gigante já não era mau, voltaram correndo e com eles veio também a Primavera.
- O jardim agora é de vocês, criancinhas — disse o Gigante, que pegou um grande machado e derrubou o muro. E quando as pessoas iam passando para a feira ao meio-dia, encontraram o Gigante a brincar com as crianças no mais belo jardim que jamais haviam visto.
Brincaram o dia inteiro e à noitinha dirigiram-se ao Gigante para despedir-se.
— Mas onde está o companheirinho de vocês? — perguntou —. O menino que eu pus na árvore?
O Gigante gostava mais dele porque o havia beijado.
— Não sabemos — responderam as crianças —. Foi-se embora.
— Devem dizer-lhe que não deixe de vir amanhã — disse o Gigante. Mas as crianças responderam-lhe que não sabiam onde ele morava e nunca o tinham visto antes. E o Gigante sentiu-se muito triste.
Todas as tardes, quando as aulas terminavam, as crianças chegavam para brincar com o Gigante. Mas o menininho de quem o Gigante gostava nunca mais foi visto de novo. O Gigante mostrava-se muito bondoso para com todas as crianças, contudo tinha saudades do seu primeiro amiguinho e muitas vezes a ele se referia.
— Como gostaria de vê-lo! — costumava dizer.
Os anos se passaram e o Gigante foi ficando muito velho e fraco. Não podia mais tomar parte nos brinquedos, de modo que se sentava numa grande cadeira de braços e contemplava o brinquedo das crianças e admirava seu jardim.
— Tenho belas flores em quantidade — dizia ele , mas as crianças são as mais belas flores de todas.
Numa manhã de inverno, olhou de sua janela, enquanto se vestia. Não odiava o Inverno agora, pois sabia que era apenas a Primavera adormecida e que as flores estavam descansando.
De repente, esfregou os olhos, maravilhado, e olhou e tornou a olhar. Era realmente uma visão maravilhosa. No canto mais afastado do jardim via-se uma arvore toda coberta de alvas e belas flores. Seus ramos eram cor de ouro e frutos prateados pendiam deles e por baixo estava o menininho que ele amara.
O Gigante desceu as escadas a correr, com grande alegria, e saiu para o jardim. Atravessou correndo o gramado e aproximou-se da criança. E quando chegou bem perto dela, seu rosto ficou vermelho de cólera e perguntou.
— Quem ousou ferir-te?
Pois nas palmas das mãos da criança viam-se as marcas de dois cravos e as marcas de dois cravos nos pequeninos pés.
- Quem ousou ferir-te? — gritou o Gigante —. Dize-me, para que eu possa tirar minha grande espada e matá-lo.
— Não — respondeu o menino —. São estas as feridas do Amor.
— Quem és? — perguntou o Gigante, sentindo-se tomado dum grande respeito e ajoelhando-se diante do menininho.
E o menino sorriu para o Gigante e disse:
— Tu me deixaste brincar uma vez em teu jardim, hoje virás comigo para o meu jardim, que é o Paraíso.
E quando as crianças chegaram correndo naquela tarde, encontraram o Gigante morto sob a árvore toda coberta de alvas flores.
Fonte: WILDE, Oscar. Obra Completa. Organização, tradução e notas de Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. Acesso ao blog: http://meudiarioimpessoal.blogspot.com/2008/04/o-gigante-egosta-oscar-wilde.html